Seção 17.3 Polinômios Irredutíveis
Um polinômio não constante \(f(x) \in F[x]\) é irredutível sobre um corpo \(F\) se \(f(x)\) não pode ser expressado como produto de dois polinômios \(g(x)\) e \(h(x)\) em \(F[x]\text{,}\) donde os graus de \(g(x)\) e \(h(x)\) são ambos menores que o grau de \(f(x)\text{.}\) Os polinômios irredutíveis funcionam como os “números primos” dos anéis de polinômios.
Exemplo 17.3.1.
O polinômio \(x^2 - 2 \in {\mathbb Q}[x]\) é irredutível pois não pode ser fatorado sobre os números racionais. Similarmente, \(x^2 + 1\) é irredutível sobre os números reais.
Exemplo 17.3.2.
O polinômio \(p(x) = x^3 + x^2 + 2\) é irredutível sobre \({\mathbb Z}_3[x]\text{.}\) Suponha que este polinômio seja redutível sobre \({\mathbb Z}_3[x]\text{.}\) Pelo algoritmo de divisão teríamos que ter um fator da forma \(x - a\text{,}\) donde \(a\) é algum elemento em \({\mathbb Z}_3[x]\text{.}\) Isto é, teríamos que ter \(p(a) = 0\text{.}\) Mas,
Portanto, \(p(x)\) não tem zeros em \({\mathbb Z}_3\) e é irredutível.
Lema 17.3.3.
Seja \(p(x) \in {\mathbb Q}[x]\text{.}\) Então
donde \(r, s, a_0, \ldots, a_n\) são inteiros, os \(a_i\) são relativamente primos, e \(r\) e \(s\) são relativamente primos.
Demonstração.
Suponha que
donde os \(b_i\) e os \(c_i\) são inteiros. Podemos reescrever \(p(x)\) como
donde \(d_0, \ldots, d_n\) são inteiros. Seja \(d\) o máximo divisor comum de \(d_0, \ldots, d_n\text{.}\) Então
donde \(d_i = d a_i\) e os \(a_i\) são relativamente primos. Simplificando \(d /(c_0 \cdots c_n)\text{,}\) podemos escrever
com \(\gcd(r,s) = 1\text{.}\)
Teorema 17.3.4. Lema de Gauss.
Seja \(p(x) \in {\mathbb Z}[x]\) um polinômio mônico tal que \(p(x)\) se fatora como produto de dois polinômios \(\alpha(x)\) e \(\beta(x)\) em \({\mathbb Q}[x]\text{,}\) donde os graus de \(\alpha(x)\) e de \(\beta(x)\) são menores que o grau de \(p(x)\text{.}\) Então \(p(x) = a(x) b(x)\text{,}\) donde \(a(x)\) e \(b(x)\) são polinômios mônicos em \({\mathbb Z}[x]\) com \(\deg \alpha(x) = \deg a(x)\) e \(\deg \beta(x) = \deg b(x)\text{.}\)
Demonstração.
Pelo Lema 17.3.3, podemos supor que
donde os \(a_i\) são relativamente primos e os \(b_i\) são relativamente primos. Em consequência,
donde \(c/d\) e o produto de \(c_1/d_1\) e \(c_2/d_2\) expressado de forma reduzida. Logo, \(d p(x) = c \alpha_1(x) \beta_1(x)\text{.}\)
Se \(d = 1\text{,}\) então \(c a_m b_n = 1\) pois \(p(x)\) é um polinômio mônico. Logo, ou \(c=1\) ou \(c = -1\text{.}\) Se \(c=1\text{,}\) então ou \(a_m = b_n = 1\) ou \(a_m = b_n = -1\text{.}\) No primeiro caso \(p(x) = \alpha_1(x) \beta_1(x)\text{,}\) donde \(\alpha_1(x)\) e \(\beta_1(x)\) são polinômios mônicos com \(\deg \alpha(x) = \deg \alpha_1(x)\) e \(\deg \beta(x) = \deg \beta_1(x)\text{.}\) No segundo caso \(a(x) = -\alpha_1(x)\) e \(b(x) = -\beta_1(x)\) são os polinômios mônicos corretos pois \(p(x) = (-\alpha_1(x))(- \beta_1(x)) = a(x) b(x)\text{.}\) O caso quando \(c = -1\) é resolvido de forma similar.
Agora suponha que \(d \neq 1\text{.}\) Como \(\gcd(c, d) = 1\text{,}\) existe um primo \(p\) tal que \(p \mid d\) e \(p \notdivide c\text{.}\) Além disso, como os coeficientes de \(\alpha_1(x)\) são relativamente primos, existe um coeficiente \(a_i\) tal que \(p \notdivide a_i\text{.}\) Similarmente, existe um coeficiente \(b_j\) de \(\beta_1(x)\) tal que \(p \notdivide b_j\text{.}\) Sejam \(\alpha_1'(x)\) e \(\beta_1'(x)\) os polinômios em \({\mathbb Z}_p[x]\) obtidos pela redução dos coeficientes de \(\alpha_1(x)\) e \(\beta_1(x)\) módulo \(p\text{.}\) Como \(p \mid d\text{,}\) \(\alpha_1'(x) \beta_1'(x) = 0\) em \({\mathbb Z}_p[x]\text{.}\) Mas isto é impossível, pois nem \(\alpha_1'(x)\) nem \(\beta_1'(x)\) é o polinômio zero e \({\mathbb Z}_p[x]\) é um domínio integrável. Portanto, \(d=1\) e o teorema está demonstrado.
Corolário 17.3.5.
Seja \(p(x) = x^n + a_{n - 1} x^{n - 1} + \cdots + a_0\) um polinômio com coeficientes em \({\mathbb Z}\) e \(a_0 \neq 0\text{.}\) Se \(p(x)\) tem um zero em \({\mathbb Q}\text{,}\) então \(p(x)\) também tem um zero \(\alpha\) em \({\mathbb Z}\text{.}\) Mais ainda, \(\alpha\) divide \(a_0\text{.}\)
Demonstração.
Suponha que \(p(x)\) tem um zero \(a \in {\mathbb Q}\text{.}\) Então \(p(x)\) deve ter um fator linear \(x-a\text{.}\) Pelo Lema de Gauss, \(p(x)\) tem uma fatoração com um fator linear em \({\mathbb Z}[x]\text{.}\) Logo, para algum \(\alpha \in {\mathbb Z}\)
Portanto \(a_0 /\alpha \in {\mathbb Z}\) e \(\alpha \mid a_0\text{.}\)
Exemplo 17.3.6.
Seja \(p(x) = x^4 - 2 x^3 + x + 1\text{.}\) Demonstraremos que \(p(x)\) é irredutível sobre \({\mathbb Q}[x]\text{.}\) Suponha que \(p(x)\) é redutível. Então ou \(p(x)\) tem um fator linear, digamos \(p(x) = (x - \alpha) q(x)\text{,}\) donde \(q(x)\) é um polinômio de grau três, ou \(p(x)\) tem dois fatores quadráticos.
Se \(p(x)\) tem um fator linear em \({\mathbb Q}[x]\text{,}\) então tem um zero em \({\mathbb Z}\text{.}\) Pelo Corolário 17.3.5, qualquer zero deve dividir 1 e portanto deve ser \(\pm 1\text{;}\) mas, \(p(1) = 1\) e \(p(-1)= 3\text{.}\) Assim descartando a possibilidade de que \(p(x)\) tenha um fator linear.
Portanto, se \(p(x)\) é redutível deve ser fatorado como o produto de dois polinômios quadráticos, digamos
donde cada fator está em \({\mathbb Z}[x]\) pelo Lema de Gauss. Logo,
Como \(bd = 1\text{,}\) ou \(b = d = 1\) ou \(b = d = -1\text{.}\) Em qualquer caso \(b = d\) e assim
Como \(a + c = -2\text{,}\) sabemos que \(-2b = 1\text{.}\) Isto é impossível pois \(b\) é um inteiro. Portanto, \(p(x)\) é irredutível sobre \({\mathbb Q}\text{.}\)
Teorema 17.3.7. Critério de Eisenstein.
Seja \(p\) um número primo e suponha que
Se \(p \mid a_i\) para \(i = 0, 1, \ldots, n-1\text{,}\) mas \(p \notdivide a_n\) e \(p^2 \notdivide a_0\text{,}\) então \(f(x)\) é irredutível sobre \({\mathbb Q}\text{.}\)
Demonstração.
Pelo Lema de Gauss, só precisamos demonstrar que \(f(x)\) não é fatorado como produto de polinômios de grau menor em \({\mathbb Z}[x]\text{.}\) Suponha que
é uma fatoração em \({\mathbb Z}[x]\text{,}\) com \(b_r\) e \(c_s\) distintos de zero e \(r, s \lt n\text{.}\) Como \(p^2\) não divide \(a_0 = b_0 c_0\text{,}\) ou \(b_0\) ou \(c_0\) não é divisível por \(p\text{.}\) Suponha que \(p \notdivide b_0\) e \(p \mid c_0\text{.}\) Como \(p \notdivide a_n\) e \(a_n = b_r c_s\text{,}\) nem \(b_r\) nem \(c_s\) é divisível por \(p\text{.}\) Seja \(m\) o menor valor de \(k\) tal que \(p \notdivide c_k\text{.}\) Então
não é divisível por \(p\text{,}\) como cada termo do lado direito da equação é divisível por \(p\) exceto \(b_0 c_m\text{.}\) Portanto, \(m = n\) pois \(a_i\) é divisível por \(p\) para \(m \lt n\text{.}\) Logo, \(f(x)\) não pode ser fatorado como produto de polinômios de grau menor e portanto é irredutível.
Exemplo 17.3.8.
O polinômio
é irredutível sobre \({\mathbb Q}\) pelo Critério de Eisenstein com \(p = 3\text{.}\)
O Critério de Eisenstein é mais útil para construir polinômios irredutíveis de certo grau sobre \({\mathbb Q}\) que para determinar a irredutibilidade de um polinômio arbitrário em \({\mathbb Q}[x]\text{:}\) dado qualquer polinômio, não é muito provável que possamos aplicar o Critério de Eisenstein. A importância do Teorema 17.3.7 é que agora temos uma ferramenta simples para gerar polinômios irredutíveis de qualquer grau.
Subseção 17.3.1 Ideais em \(F\lbrack x \rbrack\)
Seja \(F\) um corpo. Lembre que um ideal principal em \(F[x]\) é um ideal \(\langle p(x) \rangle\) gerado por algum polinômio \(p(x)\text{;}\) isto é,
Exemplo 17.3.9.
O polinômio \(x^2\) em \(F[x]\) gera o ideal \(\langle x^2 \rangle\) que consiste de todos os polinômios que não tem termo constante nem de grau 1.
Teorema 17.3.10.
Se \(F\) é um corpo, então todo ideal em \(F[x]\) é um ideal principal.
Demonstração.
Seja \(I\) um ideal de \(F[x]\text{.}\) Se \(I\) é o ideal zero, não existe nada que demonstrar. Suponha que \(I\) é um ideal não trivial em \(F[x]\text{,}\) e seja \(p(x) \in I\) um elemento distinto de zero de grau minimal. Se \(\deg p(x)= 0\text{,}\) então \(p(x)\) é uma constante não nula e 1 está em \(I\text{.}\) Como 1 gera todo \(F[x]\text{,}\) \(\langle 1 \rangle = I = F[x]\) e \(I\) é um idela principal.
Agora suponha que \(\deg p(x) \geq 1\) e seja \(f(x)\) qualquer elemento em \(I\text{.}\) Pelo algoritmo de divisão existem \(q(x)\) e \(r(x)\) em \(F[x]\) tais que \(f(x) = p(x) q(x) + r(x)\) e \(\deg r(x) \lt \deg p(x)\text{.}\) Como \(f(x), p(x) \in I\) e \(I\) é um ideal, \(r(x) = f(x) - p(x) q(x)\) também está em \(I\text{.}\) Mas, como escolhemos \(p(x)\) de grau minimal, \(r(x)\) deve ser o polinômio zero. Como podemos escrever qualquer elemento \(f(x)\) em \(I\) como \(p(x) q(x)\) para algum \(q(x) \in F[x]\text{,}\) temos que \(I = \langle p(x) \rangle\text{.}\)
Exemplo 17.3.11.
Nem todo ideal no anel \(F[x,y]\) é um idela princial. Consideremos o ideal de \(F[x, y]\) gerado pelos polinômios \(x\) e \(y\text{.}\) Este é o ideal de \(F[x, y]\) que consiste de todos os polinômios que não tem termo constante. Como tanto \(x\) como \(y\) estão no ideal, nenhum polinômio pode gerar todo o ideal.
Teorema 17.3.12.
Seja \(F\) um corpo e suponha que \(p(x) \in F[x]\text{.}\) Então o ideal gerado por \(p(x)\) é maximal se e somente se \(p(x)\) é irredutível.
Demonstração.
Suponha que \(p(x)\) gera um ideal maximal de \(F[x]\text{.}\) Então \(\langle p(x) \rangle\) é também um ideal primo de \(F[x]\text{.}\) Como um idela maximal deve estar propiamente contido em \(F[x]\text{,}\) \(p(x)\) não pode ser um polinômio constante. Suponha que \(p(x)\) é fatorado em dois polinômios de grau menor, digamos \(p(x) = f(x) g(x)\text{.}\) Como \(\langle p(x) \rangle\) é um ideal primo desses fatores, digamos \(f(x)\text{,}\) está em \(\langle p(x) \rangle\) e portanto é um múltiplo de \(p(x)\text{.}\) Mas isto implicaria que \(\langle p(x) \rangle \subset \langle f(x) \rangle\text{,}\) o que é impossível pois \(\langle p(x) \rangle\) é maximal.
Reciprocamente, suponha que \(p(x)\) é irredutível sobre \(F[x]\text{.}\) Seja \(I\) um ideal em \(F[x]\) que contenha \(\langle p(x) \rangle\text{.}\) Pelo Teorema 17.3.10, \(I\) é um ideal principal; logo, \(I = \langle f(x) \rangle\) para algum \(f(x) \in F[x]\text{.}\) Como \(p(x) \in I\text{,}\) deve ser que \(p(x) = f(x) g(x)\) para algum \(g(x) \in F[x]\text{.}\) Mas, \(p(x)\) é irredutível; logo, ou \(f(x)\) ou \(g(x)\) é um polinômio constante. Se \(f(x)\) é constante, então \(I = F[x]\) e estamos prontos. Se \(f(x)\) não é constante, então \(f(x)\) é um múltiplo constante de \(p(x)\) e \(I = \langle p(x) \rangle\text{.}\) Portanto, não existem ideais próprios de \(F[x]\) que contenham propriamente \(\langle p(x)\rangle\text{.}\)
Sage.
Os anéis de polinômios são muito importantes para a álgebra computacional e Sage permite calcular de maneira fácil com polinômios, tanto sobre anéis como sobre corpos. E é trivial verificar se um polinômio é irredutível.
Subseção 17.3.2 Nota Histórica
Ao decorrer da história, resolver equações polinomiais foi um problema desafiante. Os Babilônios sabiam como resolver a equação \(ax^2 + bx + c = 0\text{.}\) Omar Khayyam (1048–1131) criou métodos para resolver equações cúbicas através do uso de construções geométricas e seções cônicas. A solução algébrica da equaçao cúbica geral \(ax^3 + bx^2 + cx + d = 0\) só foi descoberta no século XVI. Um matemático italiano, Luca Pacioli (ca. 1445–1509), escreveu em Summa de Arithmetica que a solução da equação cúbica era impossível. Isto foi tomado como um desafio pelo resto da comunidade matemática.
Scipione del Ferro (1465–1526), da Universidade de Bolonha, resolveu a “equação cúbica reduzida,”
Manteve em absoluto segredo esta solução. Isso pode parecer surpreendente hoje em dia, quando os matemáticos estão muito interessados em publicar seus resultados, mas durante o Renascimento Italiano o segredo absoluto era costume. Os cargos acadêmicos não eram fáceis de se mantar e dependiam de ganhar competências públicas. Esses desafios podiam ser revelados em qualquer momento. Em consequência, qualquer nova descoberta importante era uma arma valiosa nesse sentido. Se um oponente apresentava uma lista de problemas para ser resolvido, del Ferro podia por sua vez apresentar uma lista de cúbicas reduzidas. Manteve em segredo sua descoberta durante toda sua vida, comunicando-a em seu leito de morte a seu estudante Antonio Fior (ca. 1506–?).
Porém Fior não era igual a seu tutor, de imediato lançou um desafio a Niccolo Fontana (1499–1557). Fontana era conhecido como Tartaglia (o Tartamudo). Quando jovem havia recebido um golpe de espada por parte de um soldado francês durante um ataque a sua aldeia. Sobreviveu a ferida, mas ficou com problemas em sua dicção pelo resto da vida. Tartaglia enviou a Fior uma lista de 30 problemas variados; Fior respondeu enviando a Tartaglia uma lista de 30 cúbicas reduzidas. Tartaglia podia resolver a lista de 30 exercícios ou poderia falhar absolutamente. Depois de muito esforço, Tartaglia finalmente obteve sucesso em resolver as equações cúbicas reduzidas e derreotou Fior, que ficou esquecido.
Neste momento outro matemático, Gerolamo Cardano (1501–1576), entra na história. Cardano escreveu a Tartaglia, implorando que ele lhe desse a solução para a cúbica reduzida. Tartaglia recusou vários de seus pedidos, mas finalmente revelou a solução para Cardano, depois que este jurou não publicar a solução nem revelar a mais ninguém. Usando o que havia aprendido com Tartaglia, Cardano finalmente resolveu a equação cúbica geral
Cardano compartilhou o segredo com seu aluno, Ludovico Ferrari (1522–1565), quem resolveu a equação geral de quarto grau,
Em 1543, Cardano e Ferrari examinaram os trabalhos de Ferro e descobriram que ele também havia resolvido a cúbica reduzida. Cardano sentiu que isto lhe absolvia de seu comprisso com Tartaglia, de maneira que publicou as soluções em Ars Magna (1545), dando crédito a del Ferro por resolver o caso especial da cúbica. Isto resultou em uma amarga disputa entre Cardano e Tartaglia, que publicou a história do juramento um ano depois.