Seção 21.3 Construções Geométricas
Na Grécia Antiga, foram postos em discussão três problemas clássicos. Esses problemas são sobre a geometria na natureza e envolvem construções com régua e compasso do que agora constitui a geometria que é ensinada no colégio; isso é, somente temos direito a usar uma régua e um compasso para resolvê-los. Os problemas podem ser formulados como segue.
Dado um ângulo arbitrário, pode este ser trissecado usando somente régua e compasso?
Dado um círculo arbitrário, podemos construir um quadrado da mesma área usando somente régua e compasso?
Dado um cubo, podemos construir a aresta de outro cubo cujo volume seja o dobro do original usando somente régua e compasso?
Depois de gerar dúvida aos matemáticos durante mais de dois mil anos, finalmente foi demonstrado que cada uma destas construções são impossíveis. Usaremos a teoria de corpos para dar uma demonstração de que as solução não existem. É bastante surpreendente que as soluções amplamente buscadas desses três problemas finalmente se encontrem na álgebra abstrata.
Em primeiro lugar, determinemos mais especificamente o que queremos dizer com uma régua e um compasso, e, além disso, examinemos a natureza desses problemas um pouco mais a fundo. Para começar, a régua permitida não tem marcas. Não podemos medir distâncias arbitrárias com esta régua. É somente uma ferramenta para traçar a reta que passa por dois pontos. A afirmação da impossibilidade de trissecar um ângulo arbitrário significa que existe ao menos um ângulo que não se pode trissecar com régua e compasso. Certamente alguns ângulos particulares podemos trissecar. Podemos construir um ângulo de \(30^\circ\text{;}\) portanto, é possível trissecar um ângulo de \(90^\circ\text{.}\) Todavia, mostraremos que é impossível construir um ângulo de \(20^\circ\text{.}\) Portanto, não podemos trissecar um ângulo de \(60^\circ\text{.}\)
Subseção 21.3.1 Números Construtíveis
Um número real \(\alpha\) é construtível se podemos construir um segmento de comprimento \(| \alpha |\) em um número finito de passos a partir de um segmento de comprimento um usando régua e compasso exclusivamente.
Teorema 21.3.1.
O conjunto de todos os números reais construtíveis forma um subcorpo \(F\) do corpo dos números reais.
Demonstração.
Sejam \(\alpha\) e \(\beta\) números construtíveis. Devemos mostrar que \(\alpha + \beta\text{,}\) \(\alpha - \beta\text{,}\) \(\alpha \beta\text{,}\) e \(\alpha / \beta\) (\(\beta \neq 0\)) também são números construtíveis. Podemos supor que tanto \(\alpha\) como \(\beta\) são positivos com \(\alpha \gt \beta\text{.}\) É bastante claro como construir \(\alpha + \beta\) e \(\alpha - \beta\text{.}\) Para encontrar um segmento de comprimento \(\alpha \beta\text{,}\) supomos que \(\beta \gt 1\) e construíremos o triângulo da Figura 21.3.2 de maneira que os triângulos \(\triangle ABC\) e \(\triangle ADE\) sejam semelhantes. Como \(\alpha / 1 = x / \beta\text{,}\) o segmento \(x\) tem comprimento \(\alpha \beta\text{.}\) Uma construção similar pode ser feita se \(\beta \lt 1\text{.}\) Deixaremos como exercício mostrar que o mesmo triângulo pode ser usado para construir \(\alpha / \beta\) se \(\beta \neq 0\text{.}\)
Lema 21.3.3.
Se \(\alpha\) é um número construtível, então \(\sqrt{\alpha}\) é um número construtível.
Demonstração.
Na Figura 21.3.4 os triângulos \(\triangle ABD\text{,}\) \(\triangle BCD\text{,}\) e \(\triangle ABC\) são semelhantes; logo, \(1 /x = x / \alpha\text{,}\) e \(x^2 = \alpha\text{.}\)
Pelo Teorema 21.3.1, podemos localizar no plano qualquer ponto \(P =( p, q)\) que tenha coordenadas racionais \(p\) e \(q\text{.}\) Necessitamos saber que outros pontos podem ser construídos com régua e compasso a partir dos pontos de coordenadas racionais.
Lema 21.3.5.
Seja \(F\) um subcorpo de \({\mathbb R}\text{.}\)
Se uma reta contém dos pontos com coordenadas em \(F\text{,}\) então satisfaz a equação \(a x + by + c = 0\text{,}\) com \(a\text{,}\) \(b\text{,}\) e \(c\) em \(F\text{.}\)
Se uma circunferência tem seu centro em um ponto com coordenadas em \(F\) e seu raio também está em \(F\text{,}\) então satisfaz a equação \(x^2 + y^2 + d x + e y + f = 0\text{,}\) com \(d\text{,}\) \(e\text{,}\) e \(f\) em \(F\text{.}\)
Demonstração.
Sejam \((x_1, y_1)\) e \((x_2, y_2)\) pontos em uma reta com \(x_1, y_1,x_2,y_2\) em \(F\text{.}\) Se \(x_1 = x_2\text{,}\) então uma equação da reta que passa pelos dois pontos é \(x - x_1 = 0\text{,}\) que tem a forma \(a x + by + c = 0\text{.}\) Se \(x_1 \neq x_2\text{,}\) então uma equação da reta que passa pelos dois pontos é
que também pode ser colocada na forma buscada.
Para demonstrar a segunda parte do lema, suponhamos que \((x_1, y_1)\) é o centro de uma circunferência de raio \(r\text{.}\) Então uma equação para a circunferência é
Esta equação pode ser facilmente posta na forma buscada.
Começando por um corpo de números construtíveis \(F\text{,}\) temos três possibilidades para construir pontos adicionais em \({\mathbb R^2}\) usando régua e compasso.
Para encontrar pontos, possivelmente novos, em \({\mathbb R^2}\text{,}\) podemos tomar a interseção de duas retas, cada uma das quais passa por dois pontos cujas coordenadas estão em \(F\text{.}\)
A interseção de uma reta que passa por dois pontos cujas coordenadas estão em \(F\) e um círculo cujo centro tem suas coordenadas em \(F\) com raio de comprimento em \(F\) poderá dar novos pontos em \({\mathbb R^2}\text{.}\)
Podemos obter novos pontos em \({\mathbb R^2}\) intersectando dois círculos cujos centros tenham coordenadas em \(F\) e cujos raios tenham longitudes em \(F\text{.}\)
O primeiro caso não entrega novos pontos em \({\mathbb R^2}\text{,}\) pois a solução de um sistema de duas equações da forma \(a x + by + c = 0\) com coeficientes em \(F\) sempre estará em \(F\text{.}\) O terceiro caso pode ser reduzido ao segundo. Sejam
as equações de dois círculos, com \(d_i\text{,}\) \(e_i\text{,}\) e \(f_i\) em \(F\) para \(i = 1, 2\text{.}\) Esses círculos tem a mesma interseção que o círculo
e a reta
A última equação corresponde a corda que passa pelos pontos de interseção dos dois círculos (quando estes pontos existem). Portanto, a interseção de dois círculos pode ser reduzida ao caso da interseção de uma reta com um círculo.
Considerando o caso da interseção de uma reta com um círculo, devemos determinar a natureza das soluções do sistema de equação
Se eliminamos \(y\) destas equações, obtemos uma equações da forma \(Ax^2 + B x + C = 0\text{,}\) com \(A\text{,}\) \(B\text{,}\) e \(C\) em \(F\text{.}\) A coordenada \(x\) do ponto de interseção é dada por
e está em \(F[ \sqrt{\alpha}\, ]\text{,}\) com \(\alpha = B^2 - 4 A C \gt 0\text{.}\) Demonstramos o seguinte lema.
Lema 21.3.6.
Seja \(F\) um corpo de números construtíveis. Então os pontos determinados pela interseção de círculos e retas em \(F\) estão no corpo \(F[ \sqrt{\alpha}\, ]\) para algum \(\alpha\) em \(F\text{.}\)
Teorema 21.3.7.
Um número real \(\alpha\) é um número construtível si e somente se existe uma sequência de corpos
tais que \(F_i = F_{i-1}( \sqrt{ \alpha_i}\, )\) com \(\alpha_i \in F_i\) e \(\alpha \in F_k\text{.}\) Em particular, existe um inteiro \(k \gt 0\) tal que \([{\mathbb Q}(\alpha) : {\mathbb Q} ] = 2^k\text{.}\)
Demonstração.
A existência dos \(F_i\) e dos \(\alpha_i\) é uma consequência direta do Lema 21.3.6 e o fato de que
Corolário 21.3.8.
O corpo de todos os números construtíveis é uma extensão algébrica de \({\mathbb Q}\text{.}\)
Como podemos ver com o corpo dos número construtíveis, nem toda extensão algébrica de um corpo é uma extensão finita.
Subseção 21.3.2 Duplicando o cubo e enquadrando o círculo
Estamos prontos para investigar os problemas clássicos de duplicação do cubo e do enquadramento do círculo. Podemos usar o corpo dos números construtíveis para determinar exatamente quando uma construção geométrica particular é possível.
Duplicar o cubo é impossível.
Dada a aresta de um cubo, é impossível construir a aresta de um cubo do dobro de seu volume usando somente régua e compasso. Digamos que o cubo original tem uma aresta de comprimento 1 e, portanto, seu volume é 1. Se pudermos construir um cubo de volume 2, então a aresta de este novo cubo teria comprimento \(\sqrt[3]{2}\text{.}\) No entanto, \(\sqrt[3]{2}\) é um zero do polinômio irredutível \(x^3 -2\) sobre \({\mathbb Q}\text{;}\) logo,
Isso é impossível, pois 3 não é uma potência inteira de 2.
Enquadrando o círculo.
Suponha que temos um círculo de raio 1. A área do círculo é \(\pi\text{;}\) portanto, devemos ser capazes de construir um quadrado de lado \(\sqrt{\pi}\text{.}\) Isto é impossível pois \(\pi\) e portanto \(\sqrt{\pi}\) são ambos transcendentes. Sendo assim não podemos construir um quadrado de mesma área que um círculo usando régua e compasso.
Subseção 21.3.3 Trissecando um Ângulo
Trissecar um ângulo arbitrário é impossível. Demonstraremos que é impossível construir um ângulo de \(20^\circ\text{.}\) Portanto, um ângulo de \(60^{\circ}\) não pode ser trissecado. Primeiro obteremos a fórmula do cosseno para o ângulo triplo:
O ângulo \(\theta\) pode ser construído se e somente se \(\alpha = \cos \theta\) é construtível. Seja \(\theta = 20^{\circ}\text{.}\) Então \(\cos 3 \theta = \cos 60^\circ = 1/2\text{.}\) Pela fórmula do cosseno do ângulo triplo,
Portanto, \(\alpha\) é uma raiz de \(8 x^3 - 6 x -1\text{.}\) Este polinômio não tem fatores em \({\mathbb Z}[x]\text{,}\) e portanto é irredutível sobre \({\mathbb Q}[x]\text{.}\) Logo, \([{\mathbb Q}( \alpha ) : {\mathbb Q }] = 3\text{.}\) Concluímos que \(\alpha\) não é um número construtível.
Sage.
As extensões do corpo dos números racionais são objetos centrais no estudo de teoria de números, de maneira que com as origem da Sage nesta disciplina, não pe nenhuma surpresa que os corpos e as extensões dos racionais estejam extensamente implementados. Sage também contém uma implementação do corpo de todos os números algébricos, com representações exatas.
Subseção 21.3.4 Nota Histórica
A Teoria Algébrica de números usa as ferramentas da álgebra para resolver certos problemas em teoria de números. A teoria algébrica de números moderna começou com Pierre de Fermat (1601–1665). Certamente é possível encontrar muitos inteiros positivos que satisfaçam a equação \(x^2 + y^2 = z^2\text{;}\) Fermat conjecturou que a equação \(x^n + y^n = z^n\) não tem soluções inteiras positivas se \(n \geq 3\text{.}\) Em sua cópia da tradução latina do livro Aritmética de Diofanto afirmou que havia encontrado uma demonstração maravilhosa deste teorema, mas que o margem do livro era muito fina para contê-la. Se baseando no trabalho de outros matemáticos, foi Andrew Wiles quem finalmente conseguiu provar o Último Teorema de Fermat no anos 1990s. A conquista de Wiles foi destacada na primeira página do New York Times.
Tentativas de demonstrar o Último Teorema de Fermat levaram a contribuições importantes a teoria algébrica de números por parte de matemáticos tão notáveis como Leonhard Euler (1707–1783). Avanços significativos na compreensão do Último Teorema de Fermat foram feitos por Ernst Kummer (1810–1893). Leopold Kronecker, um aluno de Kummer (1823–1891), se tornou em um dos principais algebristas do século XIX. A teoria de ideais de Kronecker e seu estudo de teoria algébrica de números contribuiu muito a compreensão dos corpos.
David Hilbert (1862–1943) e Hermann Minkowski (1864–1909) estão entre os matemáticos que lideraram a área no começo do século XX. Hilbert e Minkowski trabalhavam na Universidade de Göttingen na Alemanha. Göttingen foi um dos mais importantes centros de investigações em matemáticas durante os últimos séculos. O grande número de matemáticos excepcionais que estudaram ali inclusive Gauss, Dirichlet, Riemann, Dedekind, Noether e Weyl.
André Weil contestou perguntas na teoria de números usando geometria algébrica, uma área das matemáticas que estuda geometria estudando anéis comutativos. Desde 1955 até 1970, Alexander Grothendieck dominou a área da geometria algébrica. Pierre Deligne, um aluno de Grothendieck, resolveu várias das conjecturas de Weil nas teoria de números. Uma das mais recentes contribuições para álgebra e para teoria dos números é a demonstração por partes de Gerd Faltings da conjectura de Mordell-Weil . Esta conjectura de Mordell e Weil essencialmente disse que certos polinômios \(p(x, y)\) em \({\mathbb Z}[x,y]\) tem somente um número finito de soluções inteiras.