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O Plano Quântico, as Matrizes Quânticas e os Grupos Quânticos


A primeira seção deste trabalho terminou num impasse: disputando prioridade sobre o estudo dos grupos clássicos, os algebristas chamaram à atenção que estes grupos eram funtores ${\bf AlgCom}_k
\rightarrow {\bf Grp}$ (uma terminologia francesa original era funtores em grupos; depois foi acatada a denominação esquemas afins de grupo). Estes funtores eram representáveis, e tudo a ser feito com eles podia ser feito, conforme Yoneda dizia, com os objetos que os representavam. Ora, estes objetos eram álgebras de Hopf comutativas sobre k, e a categoria ${\bf AlgHopfCom}_k$ ganhou fama e fortuna entre os algebristas.

Os geômetras, por outro lado, viam os grupos clássicos como grupos de Lie, eram levados a estudar suas álgebras de Lie correspondentes e, para fugir da não associatividade, passavam às álgebras envolventes, tendo aplicado o funtor composto $\mathcal{ UL}:{\bf GrpLie}\rightarrow
{\bf Alg}_k$. Ora, as álgebras onde caíram eram naturalmente álgebras de Hopf sobre k não comutativas, mas co-comutativas.

Salomonicamente, a teoria de grupos quânticos postula que a categoria a estudar é ${\bf AlgHopf}_k$, a categoria das álgebras de Hopf não (necessariamente) comutativas nem co-comutativas. A motivação veio do fato de os físicos terem que trabalhar com relações de comutação exóticas, o que os levaram a postular o plano quântico, a ser definido a seguir.

O plano comum A2, para A uma álgebra comutativa sobre k, pode ser visto como o funtor representável ${\bf AlgCom}_k\rightarrow {\bf
Conj}$ representado pela álgebra de polinômios em duas variáveis comutativas k[X1,X2]: a cada par ordenado (a,b) é associado o único morfismo em ${\it Hom}_{{\bf AlgCom}_k}(k[x,y],
A)$ satisfazendo $x\mapsto a, y\mapsto b$. Incidentalmente, o grupo abeliano subjacente a A2 torna k[x,y] co-objeto de Hopf em ${\bf AlgCom}_k$, ou seja, uma álgebra de Hopf comutativa, com a co-multiplicação dada por

\begin{eqnarray*}\Delta:x&\mapsto x\otimes 1+1\otimes x\\
y&\mapsto y\otimes 1+1\otimes y.
\end{eqnarray*}


O golpe de estado que os físicos tramaram foi considerar o plano quântico baseado no anel de polinômios em duas variáveis não-comutativas, denotado por $k\{ x,y\}$, e nele tomar o ideal bilateral Iq gerado pelo elemento

yx-qxy, (II.1.1)

para q um elemento não nulo do corpo de constantes k. O parâmetro q vai funcionar como um parâmetro de deformação; devemos voltar a obter a situação comutativa ``clássica'' no caso q=1. O plano quântico é definido pela álgebra quociente

\begin{displaymath}k_q[x,y]:=k\{ x,y\}/I_q,\end{displaymath}

que é não comutativa se $q\not= 1$.

A terminologia adotada confunde o plano quântico com a álgebra que o representa. Para uma álgebra A, objeto de ${\bf Alg}_k$, elementos do conjunto

\begin{displaymath}{\it Hom}_{{\bf Alg}_k}(k_q[x,y],A)\end{displaymath}

estão em bijeção com pares ordenados (a,b) que satisfazem ab=qba, e são ditos pontos do plano quântico definidos sobre A.

A álgebra kq[x,y] é noetheriana, naturalmente graduada, não tem divisores de zero e tem o conjunto de monômios

\begin{displaymath}\{ x^iy^j\ \vert\ i,j\ge 0\ \}\end{displaymath}

como base do espaço vetorial subjacente; para provar isto é usada a relação

yjxi=qijxiyj.

Outro plano quântico usado em supergeometria é definido pela álgebra

\begin{displaymath}_qk[x,y]:=k\{ x,y\}/(x^2,y^2,xy+qyx).\end{displaymath}

O ideal desta segunda álgebra sendo também homogêneo, qk[x,y] é também noetheriana e graduada, e o espaço vetorial subjacente admite a seguinte base

\begin{displaymath}\{ x^iy^j\ \vert\ 0\le i,j\le 1\ \}.\end{displaymath}

Não se pode mais confiar que as ``matrizes'' que vão agir no plano quântico sejam simplesmente os endomorfismos do plano em alguma categoria: é preciso definir as matrizes relevantes da mesma forma como foi definido o plano, por deformação, e então definir também a ação.

No que se segue é assumido $q^4\not= 1$.

Na situação clássica o conjunto das matrizes $\begin{pmatrix}
a&b\\ c&d\end{pmatrix}$ com coeficientes em uma álgebra comutativa A é identificado com

\begin{displaymath}{\it Hom}_{{\bf AlgCom}_k}(k[a,b,c,d], A).\end{displaymath}

Da mesma forma, no plano quântico kq[x,y] em que vale a relação (II.1.1) yx=qxy os produtos matriciais

\begin{displaymath}\begin{pmatrix}x'\\ y'
\end{pmatrix}=\begin{pmatrix}a&b\\ c&...
...trix}a&c\\ b&d\end{pmatrix}
\begin{pmatrix}x\\ y\end{pmatrix},\end{displaymath}

referentes ao produto por $\begin{pmatrix}a&c\\ b&d
\end{pmatrix}$ à esquerda e à direita, as relações y'x'=qx'y' e y''x''=qx''y'' são equivalentes às relações
\begin{align}ab=q^{-1}ba, &\qquad ac=q^{-1}ca\notag\\
cd=q^{-1}dc, &\qquad bd=...
...1}db\notag\\
bc=cb, &\qquad ad-da=(q^{-1}-q)bc.
\tag{\bf II.1.2}
\end{align}
Por exemplo, o produto matricial à esquerda e (II.1.1) para x',y' implicam

(cx+dy)(ax+by)=q(ax+by)(cx+dy),

e identificando coeficientes de x2, y2 e xy segue

\begin{displaymath}ca=qac,\qquad db=qbd,\qquad {\rm e}\qquad
cb+qda=qad+q^2bc.\end{displaymath}

Esta última relação implica na última relação de (II.1.2) por divisão por q. As outras verificações são similares, assim como a verificação da recíproca.


Com isso, o conjunto das matrizes que vão operar no plano quântico kq[x,y] são definidas por

\begin{displaymath}\mathcal{ M}_q(2):=k\{ a,b,c,d\}/R,\end{displaymath}

onde R é o ideal bilateral de $k\{ a,b,c,d\}$ gerado pelas relações (II.1.2) acima. Se q=1 claramente $\mathcal{ M}_q(2)$ é a ágebra comutativa k[a,b,c,d] que representa o funtor que para cada álgebra comutativa A fornece o conjunto das matrizes $2 \times 2$ com coeficientes em A. Para definir o produto matricial neste conjunto é necesário instituir a co-multiplicação que, no caso comutativo (q=1) é dada por

\begin{eqnarray*}\Delta :a&\mapsto a'\otimes a''+b'
\otimes c'\\
b&\mapsto a'...
...es a''+d'\otimes c''\\
d&\mapsto c'\otimes b''+d'\otimes d''.
\end{eqnarray*}


Como as relações (II.1.2) são homogêneas em a,b,c,d a álgebra $\mathcal{ M}_q(2)$ é graduada, e o espaço vetorial subjacente admite a base

\begin{displaymath}\{ a^ib^jc^md^n\ \vert\ i,j,m,n \ge 0\ \}.\end{displaymath}

Se A é uma álgebra sobre k, objeto de ${\bf Alg}_k$, então os elmentos de ${\it Hom}_{{\bf Alg}_k}(\mathcal{ M}_q(2),A)$ são ditos pontos de $\mathcal{ M}_q(2)$ definidos sobre A. A notação matricial $\begin{pmatrix}f(a)&f(b)\\ f(c)&f(d)
\end{pmatrix}$ para o ponto f é inevitável.

As matrizes $2 \times 2$ e o plano estão assim definidos, bem como o(s) produto(s) de uma matriz por um vetor. A próxima definição é

\begin{displaymath}{\det}_q=ad-q^{-1}bc=da-qbc\in \mathcal{ M}_q(2).
\tag{\bf II.1.3}
\end{displaymath} (II.1.3)

De

\begin{displaymath}{\det}_q a=(ad-q^{-1}bc)a=a(da-qbc)=a{\det}_q\end{displaymath}

segue que $\det_q$ comuta com a, e da mesma forma, $\det_q$ comuta com todas os geradores, e $\det_q$ está assim no centro de $\mathcal{ M}_q(2)$. O determinante quântico se define também para um ponto f de $\mathcal{ M}_q(2)$ definido sobre uma álgebra A por $\det_q(f)=f(a)f(d)-q^{-1}f(b)f(c)$. Se f,g são pontos de $\mathcal{ M}_q(2)$ definidos sobre uma álgebra A tais que f(a),f(b),f(c),f(d) comutam com g(a), g(b),g(c),g(d) então o produto

\begin{displaymath}\begin{pmatrix}f(a)&f(b)\\ f(c)&f(d)
\end{pmatrix}
\begin{pmatrix}g(a)&g(b)\\ g(c)&g(d)\end{pmatrix}\end{displaymath}

é um ponto fg de $\mathcal{ M}_q(2)$ definido sobre A, e neste caso ${\det}_q(f)=\det_q(g)=\det_q(fg)\in A$.

Em $\mathcal{ M}_q(2)$ é definida uma co-multiplicação $\Delta$ e uma co-unidade $\epsilon$ que generalizam o caso comutativo:

\begin{eqnarray*}\Delta :a&\mapsto a\otimes a+b
\otimes c\\
b&\mapsto a\otime...
...psto c\otimes a+d\otimes c\\
d&\mapsto c\otimes b+d\otimes d,
\end{eqnarray*}


e

\begin{displaymath}\epsilon:a,d\mapsto 1,\qquad {\rm e}
\qquad \epsilon:b,c\mapsto 0.\end{displaymath}

Com estas operações

\begin{displaymath}\Delta({\det}_q)={\det}_q\otimes {\det}_q,
\qquad {\rm e}\qquad \epsilon({\det}_q)=1.\end{displaymath}

Podemos agora definir

\begin{displaymath}(Gl_2)_q=\mathcal{ M}_q(2)[t]/(t{\det}_q-1),\end{displaymath}

e

\begin{displaymath}(Sl_2)_q=\mathcal{ M}_q(2)/({\det}_q-1).\end{displaymath}

Para uma álgebra A um ponto de (Gl2)q ou de (Sl2)q definido sobre A é um elemento do conjunto

\begin{displaymath}{\it Hom}_{{\bf Alg}_k}(G_q,A),\qquad
{\rm para}\qquad G_q=(Gl_2)_q\ {\rm ou}
\ G_q=(Sl_2)_q.\end{displaymath}

Os grupos quânticos Gq são objetos de Hopf em ${\bf Alg}_k$, ou seja, são álgebras de Hopf com o antípoda definido matricialmente por

\begin{displaymath}\begin{pmatrix}S(a)&S(b)\\ S(c)&S(d)
\end{pmatrix}=
\frac{1}{\det_q}\begin{pmatrix}d&-qb\\ -q^{-1}c&a
\end{pmatrix}.\end{displaymath}

Há muita verificação a ser cumprida para este enunciado. Há algum susto, também: o antípoda não é involutivo:

\begin{eqnarray*}\begin{pmatrix}S^2(a)&S^2(b)\\ S^2(c)&S^2(d)
\end{pmatrix}&=
...
...\ c&d\end{pmatrix}
\begin{pmatrix}q^{-1}&0\\ 0&q\end{pmatrix}.
\end{eqnarray*}


As álgebras de Hopf Gq não são nem comutativas nem co-comutativas.


Exemplos e Exercícios


1. Seja B a álgebra comutativa

\begin{displaymath}B:= {\it Hom}_{\bf Diff}({\bf C}\setminus \{ 0\},
{\bf C}),\end{displaymath}

e seja $q\in {\bf C}\setminus \{ 0,1\}$.

Considere a álgebra não comutativa A, subálgebra de ${\it Hom}_{{\bf AlgCom}_k}(B,B)$, gerada por $\tau_q$ e $\delta_q$, onde
\begin{align}\tau_q:B&\longrightarrow B\\
f&\mapsto \tau_q(f):{\bf C}\setminus...
...\rightarrow {\bf C}\notag\\
&\qquad \qquad \ x\mapsto f(qx)\notag
\end{align}
e
\begin{align}\delta_q:B&\longrightarrow B\\
f&\mapsto \delta_q(f):{\bf C}\setm...
... C}\notag\\
&\hspace{1in}x\mapsto \frac{f(qx)-f(x)}
{qx-x}\notag
\end{align}
O par $(\tau_q,\delta_q)$ é um ponto de kq[x,y] definido sobre A. Quando q tende a 1, $\delta_q$ tende para a derivada usual.


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Nicolau C. Saldanha
1999-08-10