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Re: [obm-l] 2 Problemas



Prezado Eduardo,

O seu e-mail é bastante provocador. Seguem-se algumas observações.

> Problema 1.  O que vocês acham sobre o método de ensino da matemática,
> deve-se começar pelo concreto e ir em direção ao abstrato mais geral, ou
> seguir o caminho inverso?

No meu caso particular, ambas as direções têm ocorrido! Às vezes, compreendo
mais facilmente uma teoria abstrata a partir de casos particulares
concretos. Por exemplo, se me recordo bem, só consegui entender o cerne da
idéia de espaço topológico depois de seguir o trajeto

IR-> IR^n-->espaços com produto interno-->espaços normados-->espaços
métricos

Em outros casos, porém, essa ordem torna-se algo enfadonha. Recordo-me de um
curso sobre equações diferenciais que fiz na UFMG (quase no final do
Bacharelado),  no qual o professor (seguindo o livro adotado) não
pressupunha familiaridade sequer com os rudimentos da Álgebra Linear. Para
mim, muitas demonstrações apresentadas no livro eram maçantes, tortuosas,
longas e difíceis de reter -- quando uma formulação ligeiramente mais
abstrata poderia ter proporcionado argumentos muito mais concisos,
penetrantes e elegantes. Eu já dispunha de conhecimentos sólidos em Álgebra
Linear e espaços métricos, embora não de equações diferenciais. Com meu
treinamento prévio na arte de abstrair e generalizar, reescrevi boa parte do
livro em notação mais compacta e usando resultados bem estabelecidos da
Álgebra Linear. Foi uma ótima experiência, um exercício proveitoso de
particularização! Quando, na primeira prova daquela disciplina, o professor
pediu para demonstrar que toda equação diferencial linear de segunda ordem
possui duas soluções linearmente independentes, eu não resisti e provei que
o núcleo de um operador diferencial linear de ordem n é um espaço vetorial
de dimensão n. Antes do "CQD" final, eu disse apenas: "Agora, basta fazer
n=2 no raciocínio anterior."

Há uma passagem no "Introduction to the Philosophy of Mathematics", de
Bertrand Russell, no qual ele diz que optar pela generalidade logo de
início, embora exija mais esforço, permite economizar raciocínio a longo
prazo. Estou convencido de que há um ponto do ensino a partir do qual é
conveniente treinar a arte de raciocinar FORMALMENTE e então prosseguir
pegando os esqueletos lógicos das teorias para, a partir deles, reconstruir
a "matéria primordial" que as originou. Ou seja, em vez de seguir APENAS a
direção

particular-->geral

eu sugeriria, SIMULTANEAMENTE,

particular-->geral     geral-->particular

Para dar mais um exemplo verídico e simples, lembro-me de uma prova de
"Introdução à Álgebra" para a qual não havia me preparado com antecedência.
Uma das questões era: "Prove que entre sete números inteiros e consecutivos,
pelo menos um é múltiplo de sete." Bem, achei muito mais fácil começar
raciocinando em termos gerais: considerei n números consecutivos quaisquer e
provei (em uma ou duas linhas) que pelo menos um devia ser múltiplo de n.
Por ter faltado às aulas e não ter me treinado no raciocínio "de baixo
nível" (sem nenhuma conotação pejorativa!) das aulas, só consegui resolver
aquela prova (e acertar todas as questões!) raciocinando em termos gerais e
depois particularizando. Por exemplo, uma outra questão pedia para
justificar o critério de divisibilidade por 9. Em vez de raciocinar
diretamente com esse caso,  achei muito mais fácil considerar números
escritos numa base p>1 e justificar a divisibilidade por p-1, após o que eu
disse: "O referido critério segue-se imediatamente fazendo-se p=10 no
raciocínio anterior." Várias outras situações semelhantes aconteceram comigo
durante todo o Bacharelado.

>O Halmos, por exemplo, defende a idéia de
> estudar espaços de Hilbert simultaneamente a espaços vetoriais de dimensão
> finita.

No momento, concordo plenamente com Halmos!

> A ordem de criação da matemática é do mais concreto para o mais abstrato,
> pelo que compreendo.

Bem, com base nos exemplos que ofereci, você verá que este nem sempre é o
caso, o que de modo algum invalida a sua afirmação seguinte:

>Depois que se viram muitas estruturas de
> características similares (espaços vetoriais com certas propriedades,
p.e.),
> se retira uma noção mais geral e abstrata (espaços de Hilbert) e daí
> retiram-se propriedades mais fracas mas muito gerais.

Uma resposta parcial à sua questão:

> que o ensino deva seguir essa mesma direção. Existem experiências de
ensino
> ou alguém já estudou algum assunto seguindo a ordem inversa?

Dependendo do grau de sofisticação do meu aluno e do tópico, eu sigo a ordem
inversa (pelo menos a princípio). Abstração e formalismo não são artifícios
para mero uso posterior. Ao contrário, conforme foi devidamente enfatizado
por Hilbert em diversas ocasiões, generalidade e abstração são ferramentas
forjadas precisamente para SIMPLIFICAR o entendimento. Este tema é hoje
muito discutido por uma classe de cientistas que têm que lidar com seres
muito mais estúpidos do que os aprendizes humanos, a saber, os COMPUTADORES.
A "epistemologia digital", conforme eu a chamaria, tem lançado muito mais
luz sobre o aprendizado humano do que o estudo da gênese do conhecimento nos
próprios sers humanos! Paradoxal?

Um forte abraço,

Carlos César de Araújo
Matemática para Gregos & Troianos
www.gregosetroianos.mat.br
Belo Horizonte, MG


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Instruções para entrar na lista, sair da lista e usar a lista em
http://www.mat.puc-rio.br/~nicolau/olimp/obm-l.html
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